Na Coreia do Norte – Os guias e metrô que também é um abrigo nuclear

Acaba que por todos os nossos passos serem vigiados e ser estritamente proibido conversar com locais na rua (até porque eles não falariam inglês de qualquer forma), os guias acabaram sendo o nosso link mais próximo que poderíamos ter como pensa e vive um norte-coreano. Tudo bem, todos os relatos aqui serão baseados na percepção de três ou quatro pessoas (nossos guias), mas ainda assim, de pouquinho e pouquinho, você consegue algumas informações legais. De qualquer forma, como já falei várias vezes, isso aqui é um blog e não uma dissertação de mestrado.

Havia poucos carros passeando pelas avenidas principais de Pyongyang. Porém, quando víamos, eram realmente carros de primeira como essa Mercedes acima. No comunismo do mundo mágico de Kim Il Sung, todos são iguais, porém uns são mais iguais que outros…

Eu não consegui identificar direito que carro era esse, mas os europeus que estavam no ônibus ficaram a polvorosa quando o viram. Segundo eles, um carro como esse não sai por menos de 70.000 euros…
E para você aí que tá com dinheiro sobrando, achei isso incrível, um out-door fazendo propaganda de um carro. Se você visse o tanto de carros nas ruas de Pyonyang saberia qual a minha surpresa em ver um out-door como esse. Além disso, não existem empresas no país. Para que diabos alguém faria propaganda então?

Eles dormiam no mesmo hotel que a gente. Apesar de que havia uns quartos “especiais” para guias. Especiais? Sim, especiais. Nos nossos quartos tínhamos acesso a Al Jaazera, canal internacional de notícias, e, salvo engano, BBC News.  Lógico que no quarto dos guias eles não tinham acesso a isso.Primeiro e antes de tudo é sempre importante citar, o guias são, sem sombra de duvidas, parte da elite da sociedade coreana. Conversando com eles você percebe que eles são estudados, inteligente e têm bastante cultura, apesar de ser algo limitado ao que eles podem saber. Um dos guias inclusive sabia a capital do Brasil (uau, meu Deus! Que coisa maravilhosa! É patrão, na China NINGUÉM sabia a capital do Brasil, no máximo um outro falava Rio de Janeiro. Por essas e outras que meu termômetro de cultura na Ásia é ver se alguém sabe o que é Brasília. Bem, de qualquer forma, experimente perguntar para um brasileiro médio qual a capital da Índia ou da China e vamos ver se ele sabe te dizer). Você conversa e vê que eles realmente sabem algo sobre a história de outros países (eles sabiam que fomos colonizados por Portugal, por exemplo), mas, mais uma vez, algo bem limitado ao que podem saber. O guia me falou que odiava Israel e que Israel era um câncer do Oriente Médio. Que a Síria e o Irã são países parceiros. Nada inesperado.

E AÍ? COMO VOCÊS VIVEM NA COREIA DO NORTE?

Para conseguir informações mesmo e tentar ter um panorama do que é Coréia do Norte, você precisa primeiro conquistar a confiança do guia, ficar amigo dele, porque aí uma hora ou outra ele começa a soltar algumas informações interessantes. Gente, não estou sendo maquiavélico não, eu não era nenhum espião tentando conseguir informações de onde estão as instalações nucleares ou a mansão de Kim Jong Il, eu basicamente queria descobrir um pouco da realidade da vida cotidiana, ainda que só de um membro da elite de Pyongyang. Pelo que pudemos conversar, a vida dele não é muito diferente da nossa. Eles vão para a escola, depois estudam bastante para poder passar em uma boa faculdade, se formam, procuram um emprego, trabalham. Trabalham de segunda a sexta, no fim de semana saem para tomar um chope com os amigos, conhecem pessoas, namoram, tem sonhos, casam, aplicam para um apartamento com as fotos de Kim Jong Il e Kim Il Sung lhe olhando de cima para baixo, tem filhos, constituem uma família e o ciclo recomeça. Ao que me parece uma vida normal. De qualquer forma, a guia vivia num apartamento de quatro quartos com os pais, muito maior do que qualquer apartamento que alguém do nosso grupo morasse =P

Apesar que, os nossos guias, como falei, não eram muito parâmetro. Uma noite, logo no começo, nós predispomos a pagar uma cerveja para um dos nossos guias, parte para confraternizar, parte para ver se, bem, ele ficava um pouco mais “soltinho” e assim pudesse nos dar alguma informação interessante sobre a vida na Coréia. O cara recusou porque disse que não bebia cerveja, só tomava uísque!! Eu juro que deu vontade de rir na hora lembrando o quanto é raro eu beber uísque no Brasil.

Visitamos também um navio americano espião americano que foi capturado em águas norte-coreanas. Dá pra ver que a situação foi um pouco complicada pelas marcas de bala marcadas em vermelho na figura abaixo
Buracos de balas na porta do navio

CURIOSIDADE ATIÇADAS

Em um país que mais parece saído de dentro de uma máquina do tempo há trinta anos atrás, em um país sem internet, é LÓGICO que a sua curiosidade fica deveras atiçada e você começa a perguntar e querer saber tudo sobre a vida cotidiana. Não foi diferente com os nossos guias. E dá-lhe perguntar para ele se lá existe internet, cartão de crédito, cheque…

Recepção do nosso hotel

Bem, não há acesso a internet externa, eles só tem um rede interna. Eles não podem mandar e-mails ou se comunicar com o mundo lá fora. Só tem acesso a internet quem o regime acredita que realmente precisa ter acesso como por exemplo os cientistas (que precisam saber da tecnologia do mundo afora), altos funcionários do governo, empresas de comercio exterior… Excepcionalmente alunos que forem muito brilhantes. Se eu quiser me contactar com o guia hoje, por exemplo, devo mandar um e-mail pra companhia dele, eles imprimem e o entregam. Não há forma de nos comunicarmos diretamente.

Lá existem bancos, mas todos estatais. Há o Banco Central, Banco de Comercio Exterior… Eles também têm cartão de crédito e cheques. Perguntei se o cheque do guia era bumerangue (aquele que vai e volta), ele me respondeu que o dele na verdade é frisbee, só vai e não volta. Como eles não tem internet acabam tendo que ir pagar as contas no correio mesmo.Segundo o guia, lá não existe empresa privada. Todos vivem de salario. Há uma hierarquia que é mais ou menos assim. Há o cara do balcão, o gerente da loja, o gerente de todas as lojas e lá no final, o Estado como dono de tudo.

Apesar de termos nossos celulares apreendidos no aeroporto, os coreanos podem possuir celulares, basta ter dinheiro para poder comprar e, segundo o guia, não é tão caro.

Depois de uns vinte minutos praticamente INTERROGANDO o pobre do guia sobre como se faz as coisas mais simples da vida cotidiana, como pagar uma conta ou assinar um cheque, ele simplesmente deve ter começado a achar que nos éramos um bando de idiotas mesmo. Nós ficamos tão “idiotas” com as coisas mais simples da vida, em saber como as coisas mais banais da vida funcionavam que uma noite fomos numa pizzaria e eu realmente fiquei impressionado como havia um delivery por lá.

Outro dia fomos andar de metro e ficamos fascinados com aquela geringonça que parecia ter saído de uma máquina do tempo, como já havia dito. Parecíamos crianças nos divertindo e andando naquele metrô. Mais uma vez o guia deve nos achar um bando de idiotas, como é que ficamos tão fascinados por andarmos em um simples metro. Ele deve ficar pensando se de onde nos viemos não tem metro.

STAND UP NORTE COREANO

No meio de todo esse interrogatório, ele mandou uma piada que apesar de ser bem imbecil eu ri pra caramba. Como se chama um veado sem olhos (dear without eyes)? No eye dear (trocadilho com “no idea” do inglês “não tenho ideia”. Quem manja inglês vai entender a piada. Pra mim ela é parecida com a piada de se perguntar qual animal tem entre três e quatro olhos? Simples, é o Piolho. Eu não vou explicar a piada, gente, fica pra vocês entenderem, hahahah).
Pior que não foi só essa piada não, o guia não parava de contar piadas, só que as outras bem mais sem graças. Contou uma piada do Robin Hood (quando na verdade ele queria dizer Don Juan), mas que no final fez sentido. Depois contou outras piadas bem simplesinhas. (Doutor, quanto é para arrancar um dente? É 150 reais. Em quanto tempo o senhor arranca? Em 2 segundos! Nossa, mas é muito dinheiro para pouco tempo. Bem, se você preferir, então me pague 150 reais e eu arranco o dente bem devagarinho!!). Era interessante vê-lo contando piadas porque eles eram de uma simplicidade gritante, mas parece aquelas piadas que você contava quando era criança. Interessante ver o nível de inocência deles.O pior que conversando com os guias tinha hora que dava, sinceramente, pena, saca? Pombas, você via, como já falei, que eles eram MUITO inteligentes. Conseguiam levar uma conversa na boa sobre vários assuntos diferentes e, o melhor de tudo, que eles tinham um raciocínio bem rápido, principalmente para contar piadas ou zoar alguém. Ele era muito articulado e desenrolado. Era triste saber que toda aquela inteligência estava sendo desperdiçada e aprisionada no mundo mágico de Kim Il Sung. Dava uma pena tão grande saber, cara, que se eles não tivessem tido a maldita sorte de nascer na parte norte da península, provavelmente seriam pessoas bem sucedidas, enquanto que lá na Coréia do Norte o máximo que devem conseguir é ter uma vida um pouquinho mais confortável que de outros compatriotas.Era triste, cara. Um dia perguntei para ele que país ele gostaria de visitar e ele me respondeu sem pensar: Venezuela. Perguntei para ele e ele me respondeu que a Venezuela é um país impressionante. Que lá até os pobres tem dinheiro para poder comprar perfumes. Lá os pobres adoram se perfumar e deve ser uma experiência impressionante pegar um busão pela manhã para ir trabalhar e ir sentindo diferentes tipos de perfumes e cheiros. Cara, eu poderia até zoar com isso, mas quando ouvi essa história eu juro que eu fui tomado por uma tristeza indescritível justamente pelo que já expliquei acima.

PROCESSO ELEITORAL

Enfim, continuando nas perguntas sobre o maravilhoso mundo mágico de Kim Il Sung, perguntamos ao guia se haviam eleições por lá, ele disse que sim, que ele tinha o direito de dizer sim e dizer não? Ãhn? Como diabos funciona isso? Basicamente, há algo como um Conselho Municipal que escolhe quem vai ser o deputado que vai representar aquele município ou bairro no parlamento. Eles votam pra dizer se aceitam ou não a decisão. Segundo ele, eles geralmente aceitam porque o Conselho Municipal só escolhe as pessoas mais “trabalhadoras” pra poder ocupar o cargo. Ele ficou visivelmente desconfortável quando estávamos perguntando pra ele e tentava de toda forma mudar de assunto. Quando o desespero tomou conta dele, ele virou para o lado e começou a falar comigo: – “Então, Claudio, vamos lá no Tae Kon Do para ver se a guia quer casar com você?

Guia de Tae Kon do nos recepcionado no “templo ao Tae Kon Do”

Só para vocês entenderem mais ou menos que história é essa. Entre as milhares de atrações que fomos visitar enquanto estávamos na Coréia do Norte, uma delas foi uma escola de Tae Kon Do, arte marcial coreana. Em todas atrações que vamos, há sempre um “guia local”, haja vista que é impossível o guia que fica com a gente no ônibus saber o que significa as dezenas de atrações que fomos visitar. Quando chegamos a guia local era muito bonita, bem, na verdade, a maioria das “guias locais” eram coreanas bem bonitas. É muito interessante como os guias locais sempre são mulheres e de uma grande beleza. Além disso, elas sempre estão muito maquiadas e impecáveis. Parecem umas bonequinhas. Além disso, claro, sempre ha soldados de longe vigiando a gente e tentando passar desapercebidos. Quando um aparece ali atrás das árvores, tentando ser discreto, a galera vai a loucura e todo mundo fica doido tirando foto dele. É engraçado ver o desespero do pobre tentando se esconder atrás das árvores enquanto vê aquelas dezenas de lentes apontando para ele.Tecla PAUSE

Mas essa guia do Tae Kon Do era de uma beleza estonteante. Falei brincando para o guia da gente que queria casar com ela, porque, cara, ela realmente era muito linda. Ele ficou rindo, mas depois, toda vez que a gente conversava sobre algum assunto, digamos, “sensível”, ele para mudar de assunto me falava: – Então, Claudio, vamos lá no Tae Kon Do para ver se a guia quer casar com você?

Tecla PLAY

QUERENDO SAIR DO HOTEL

Outro dia também fomos perguntar porque não podíamos sair do hotel sem a companhia do guia. Lógico que sabíamos porque, mas queríamos ouvir o que ele iria falar para a gente. Ele disse que não podíamos sair do hotel sozinhos porque ninguém falava inglês e podíamos entrar em uma enrascada. Quando íamos continuar a conversar, ele virou para mim e, adivinha? – “Então, Claudio, vamos lá no Tae Kon Do para ver se a guia quer casar com você?”. Lógico que entendi a senha =P

Prédios modernos em Pyongyang

Perguntei também para a guia se ela já tinha tido problemas com algum turista muito chato. Ela disse que teve problema só com um cara. Ele era um psicólogo e todos os dias pela manhã queria que ela fizesse um teste pra ele ter certeza que ela, veja você, não era louca. Sim, isso mesmo, vários itens que ela deveria escolher e figuras e coisas assim. No terceiro dia que ele pediu pra ela fazer isso, ela começou a chorar falando que não queria fazer isso. No final o doido era ele mesmo.

Sim, cara, lá tava tão quente que algumas vezes tudo o que a gente queria era ficar sentando de frente para um ventilador…
Quanto valia um escravo no tempo feudal coreano por idade e sexo. A mulher valia mais porque podia ter filhos. Sim uma vaca valia bem mais que o dobro que qualquer ser humano…

Por último, os guias parecem ter um certo fascínio por números. Todos monumentos que chegamos, eles antes de explicar tudo, fazem uma grande e detalhada explicação de quantos metros quadrados tem a área do monumento, qual sua altura, quanto pesa, do que é feito, quando e quantas vezes um dos três notáveis visitou o lugar. Parece que essas paradas são pra poder transparecer grandeza e aumentar o nosso fascínio, já que fica claro quando você vê a cara do guia o quanto ela brilha quando ele diz mais uma de suas grandes curiosidades, como quantas pedras de mármores foram utilizadas para fazer tal e tal estatua e quanto metros quadrados ocupa o lugar.

Galera batendo foto em um monumento
Dentro do Metrô!

METRÔ NORTE COREANO – UMA OBRA DE ARTE

O metrô era uma atração por si só. Copiando o metrô de Moscou (umas das maiores obras arquitetônicas do mundo e propaganda do regime) eles também fizeram um metrô grandioso, cheio de luxo e bem bonito.

Nosso amigo, todo pimpão, guiando os coreanos à prosperidade

O engraçado era que estava previsto para nós vermos apenas uma estação de metrô e depois irmos embora. Mas, pombas, queríamos também ANDAR de metrô no meio do povo. Depois de muita insistência eles nos deixaram entrar no metrô. Depois da primeira estação que podemos ver a pegadinha. Só a PRIMEIRA estação que continha todos aqueles mosaicos, figuras e lustres.

Linha viária do metrô

Lógico que, dentro do metrô, iriam haver fotos dos dois grandes líderes

Jornais estatais eram disponibilizados de graça e expostos no metrô

As outras eram apenas estações normais e sem muita graça. Só na quinta, que foi a que descemos, que tinha mais mosaicos e lustres, não por coincidência, estação de metrô próxima do outro hotel em Pyongyang que aceita turistas estrangeiros. Trocando em miúdos, provavelmente  só duas estações de metrô eram arrumadas apenas para turistas observarem, as outras, lógico, eram buracos no chão…

Exemplo de estação de metrô “normal” onde, lógico, não nos foi permitido descer

Nas paredes, lógicos, mosaicos exaltando a felicidade que os coreanos tem em viver sob a tutela do grande Kim Il Sung.
Nos mosaicos, sempre representações de comida, prosperidade, tecnologia e muita, MUITA felicidade.

Saudações!
Mosaicos

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6 comentários em “Na Coreia do Norte – Os guias e metrô que também é um abrigo nuclear

  1. Muito bom blog, toda vez que eu tou lendo eu sempre baixo a barra de rolagem para ver se ainda tem mais texto pela frente. Se ja esta acabando eu comeco a ler bem devargazinho para poder durar mais.

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